quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Modernismo em palavras e imagens


Por Angélica Coutinho

No clássico livro de João Luiz Lafetá, 1930 - A crítica e o modernismo, o movimento nascido do "brado coletivo principal", como definiu Mário de Andrade o acontecimento de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, é visto a partir de um desdobramento entre projeto estético e projeto ideológico. No primeiro momento, há a marca do estético, baseado na ruptura com a linguagem tradicional e a busca radical de renovação. O problema ideológico se tornará marcante a partir da década de trinta, quando passa a ser fundamental pensar a função social da literatura, o papel do escritor e as ligações da ideologia com a arte. É claro que essas divisões são funcionais, mas não significam que um projeto exclua o outro. No entanto, marcam a predominância de um sobre outro. O fundamental é que sob os dois existe uma questão que permanecerá na discussão artística durante décadas: o nacional. Problema comum às culturas que passaram pela colonização e construíram seu discurso político, histórico e artístico a partir de uma posição subalterna. Mesmo com as propostas pós-coloniais contemporâneas, vemos que ainda persistem as discussões em torno da importação de idéias, da defesa de uma identidade original entre outros temas.
Ao observar estes dados superficiais sobre o Movimento Modernista, já podemos identificar algumas marcas – projeto estético sob o signo da vanguarda, da renovação e projeto ideológico sob o signo da construção de identidade nacional – que estarão presentes na década de 60, no trabalho artístico de um grupo de jovens que escolhem a expressão audiovisual em vez da escrita para pensar artisticamente. A transição da literatura para o cinema como forma de expressão hegemônica a fim de pensar o Brasil é explicada por Glauber Rocha em Revolução do Cinema Novo:
Se as gerações de vinte e dois/trinta/quarenta e cinco se expressaram através da literatura – cujo último alento polêmico foi o concretismo nos finais da década de cinqüenta – e se o teatro foi sempre uma expressão tomada de assaltos e de crises durante todo este período – a expressão por excelência do momento nacional é o cinema. (...) No momento em que o concretismo decretou a falência da nossa poesia, uma nova geração de romancistas não aconteceu para mover as pedras deixadas pelos autores de trinta – surgiram autores de cinema (...) (ROCHA, 1981: 24)
O autor que Glauber cita como marco dessa passagem da hegemonia literária para a cinematográfica na tarefa de pensar o Brasil é Nelson Pereira dos Santos com sua obra Vidas secas, de 1963, uma adaptação de um dos principais representantes do projeto ideológico do modernismo literário: Graciliano Ramos.
É nesse sentido que uma ponte se estabelece: os jovens cineastas da geração de sessenta estarão criando a cinematografia brasileira moderna a partir de um diálogo frutífero com os autores modernistas partindo principalmente da geração de trinta, já que o ponto de partida do movimento audiovisual é de forte marca ideológica. No entanto, não podemos imaginar que essa ponte se estabelece sobre um vazio. Toda uma geração, que abrigou Paulo Emílio Salles Gomes, Décio de Almeida Prado e Antônio Cândido, entre outros, tratou de estabelecer relações entre todas as expressões artísticas que culminavam no cinema. Assim, o Chaplin Club do Rio de Janeiro, entre 1928-1930, sob a direção de Cláudio Mello, Plínio Sussekind da Rocha e Octavio de Faria, serviu de inspiração para os jovens paulistas, que pouco tinham a fazer na provinciana capital industrial do país, criarem o Clube de Cinema de São Paulo, em 1940, e a revista Clima, em 1941. No Clube, a descoberta de que o cinema era arte e não apenas espetáculo; nas páginas de Clima, o exercício do ensaio e da crítica fundamentada sobre a sétima arte. Foi essa mesma geração que esteve em contato estreito com os principais nomes do Movimento Modernista de 22: Mário e Oswald de Andrade.
É claro que toda a movimentação crítica e ensaística que se estabelecia não era aceita facilmente. Oswald de Andrade, por exemplo, chamava os rapazes da revista Clima de "chato-boys", o escritor e cronista do Diário de São Paulo Luís Martins achava os ensaios rígidos e acadêmicos demais e outros pensadores questionavam o interesse de discutir problemas estéticos sem nenhuma ligação com o momento político. Ou seja, é bastante claro que o período entre as décadas de 20-60 foi um período de estabelecimento de alguns parâmetros baseados na institucionalização do pensamento crítico e acadêmico no Brasil a partir de grupos e instituições, mas com a marca profunda deixada pela geração de 22 e pelo romance social de trinta.
Vamos, a partir deste ponto, pensar a relação cinema-literatura sob a luz do texto Mapeando o pós-moderno, de Andréas Huyssen, no qual é proposta a análise das "Ungleichzeitigkeiten” (dissincronias) no interior da modernidade e relacioná-las às constelações e contextos específicos das culturas e histórias nacionais e regionais" (HUYSSEN in HOLLANDA, 1991: 42). Vamos utilizar a idéia de modernismo-meta de Renato Ortiz em A moderna tradição brasileira, já que a idéia de modernismo atravessa as décadas manifestando-se na arquitetura, mais claramente na década de quarenta com a construção do conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, e já nos anos sessenta com a construção de Brasília. Esses são alguns exemplos de manifestação criativa que tem como paradigma o Movimento Modernista.
Parece-nos muito próxima a idéia do "caráter especificamente norte-americano do pós-modernismo", pois assim como Huyssen demonstra que a Alemanha Ocidental buscava uma identidade cultural moderna, civilizada, e em certa medida, redentora, e afirma que "nem as variações sobre o modernismo dos anos cinqüenta nem a luta dos anos sessenta por tradições culturais alternativas democráticas e socialistas poderiam ter sido construídas como pós-modernas"(HUYSSEN in HOLANDA, 1991: 35), podemos ver no Brasil a mesma busca motivada por razões diferentes. O otimismo dos anos cinqüenta, as propostas políticas de transformação capazes de tirar o Brasil do subdesenvolvimento, o moderno identificado com um desejo de construção de um país novo. Mas, é claro, que tal projeto não é articulado de forma homogênea. Assim, como nos anos vinte, as idéias estéticas num segundo momento se radicalizam em direção ao nacionalismo e à idéia de brasilidade compreendida mais à esquerda por Oswald de Andrade e mais à direita por Plínio Salgado, no cinema dos anos 60/70 parece-nos haver também uma cisão, porém de motivação estética, já que grande parte do grupo "trafegava" à esquerda.
No entanto, é funcional trabalhar sobre uma periodização do Cinema Novo em três fases: 1960-1964, 1964-1968 e 1968-1970. Os marcos são sempre momentos de ruptura na história social brasileira que impediram a articulação temática nacionalista de esquerda com forte impacto sobre as opções estéticas. O primeiro marco de ruptura é o golpe militar que lança uma nova problematização para os pensadores do país em construção democrática; o segundo, é o golpe dentro do golpe representado pelo Ato institucional número 5 que impõe a censura e a criação de novas formas de comunicação; e, por fim, quando o projeto parece esgotar-se junto com a crença na construção de uma sociedade desenvolvida e democrática.
Propomos, então, analisar alguns momentos das três etapas propostas à luz de algumas características modernistas desde o seu ingênuo compromisso inicial até a obrigação em "metaforizar-se" devido à censura, considerando o Modernismo-meta, proposta que parte de uma perspectiva civilizatória de emergência de um Brasil Moderno que desaparece com o Cinema Marginal, libertário e sem compromisso com a utopia modernista.
No primeiro momento, a relação do Cinema Novo com o movimento de 22 e com a ideologia nacionalista surge com aparente naturalidade. Os jovens cineastas encontram nas páginas impressas e no projeto modernista tudo o que eles querem desenvolver nas telas e que não aconteceu nos anos vinte porque não havia "maturidade" cinematográfica. Assim como os modernistas queriam romper com o parnasianismo e o estilo europeu de produzir cultura, os cinemanovistas queriam sepultar a chanchada e os projetos megalomaníacos de produzir filmes à moda de Hollywood em um país subdesenvolvido. Assim como os modernistas sofriam influências das vanguardas artísticas européias, os cinemanovistas eram influenciados pelo cinema europeu do pós-guerra e, nessa primeira fase, principalmente, o neo-realismo italiano. Se na literatura dos anos vinte a re-elaboração se dava pela antropofagia, no cinema dos anos 60/70 ela se dava pela própria revelação da imagem brasileira e pela subversão da narrativa para abalar as estruturas da ideologia dominante.
É importante perceber, antes de avançar que, para o modernismo, a questão de nossas raízes, explicitada no título do livro de 1926 de Sérgio Buarque de Holanda, era fundamental sob o prisma de uma crítica ao processo de colonização portuguesa e a imposição de uma cultura européia. Pretendia-se uma redescoberta do Brasil, retomando o projeto romântico, por um lado com uma postura crítica marcada pela consciência histórica e, por outro, com um projeto ufanista. Foram essas duas posições que definiram a divisão do grupo modernista.
No grupo de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, o da postura crítica, entrar na modernidade significa assumir que o diferencial de nossa cultura é o fato de ela não ser pura, como nos mostrou a rapsódia Macunaíma. E já que somos feitos daquilo que se deglute, sob a bandeira da antropofagia, assim devemos continuar usando a traição da memória como principal estratégia para lidar com a influência estrangeira. Aliás, o esquecimento, característica tão criticada nos brasileiros, pode ser vista como o que tem possibilitado, ao longo dos anos, a aceitação da imigração estrangeira e a incorporação de hábitos destas outras comunidades sob a égide de nossa questionável cordialidade, como Mário e Oswald viram e viveram na São Paulo cheia de europeus recém-chegados. Pois, "já ter esquecido antigas tragédias é um dos principais deveres cívicos contemporâneos" (ANDERSON in ROUANET, 1997: 85).
Entendendo que o avanço da modernização é uma visão avassaladora na década de vinte numa cidade como São Paulo com a "multiplicação ciclópica das escalas do ambiente urbano" (SEVCENKO, 1992: 19), o Modernismo buscou conciliar a relação da tradição com a cultura nacional renovada ratificando nossa miscigenação. A relação com o passado, que era de rejeição aos modelos pré-estabelecidos – a cópia e a mera representação – passa a ser a da redescoberta a partir da caravana a Minas Gerais, em 1924, por uma comitiva modernista composta pelos dois Andrades e Tarsila do Amaral, entre outros.
Desse momento, podemos destacar duas vertentes que marcarão o pensamento modernista:
- a possibilidade de construir uma tradição até então não reconhecida, que se concretiza no respeito aos mestres do passado e na noção de patrimônio;
- o reconhecimento do nosso barroco como uma superação de modelos pré-estabelecidos, com marcas de invenção, surpresa, sentimento.
É no Barroco de Aleijadinho que Mário de Andrade sintetiza sua concepção de cultura brasileira ao definir: "Ele transporta ao seu clímax a tradição luso-colonial de nossa arquitetura, lhe dando uma solução quase pessoal, e que se poderá ter por brasileira por isto" (ANDRADE, 1975: 31). Para Mário, o ser brasileiro se encontrava no entrelaçamento das etnias manifestado na criação artística de um mulato, como Aleijadinho, ou de muitos anônimos das músicas e danças folclóricas. Ele pretende que tais manifestações sejam amplamente conhecidas, pois são nelas que a nacionalidade de um povo apresenta sua "particularidade universal".
Encontramos aqui a positividade do Modernismo. A certeza de que a existência de uma cultura brasileira é possível gerará nos anos 50/60 uma nova onda de valorização da produção cultural, de preservação do patrimônio sob novas designações. O folclore, por exemplo, nos anos sessenta, passa a se chamar cultura popular e tem novos objetivos, pois "contrariamente aos folcloristas que 'lutavam' pela permanência dos traços tradicionais, que buscavam formas puras ou reconstituições completas, os artistas e intelectuais da década seguinte (refere-se a sessenta) viam nas fontes populares uma dinâmica cultural forte, capaz de propiciar novas formas de comunicação entre os intelectuais e o 'povo brasileiro' " (VELOSO & MADEIRA, 1999: 183). É a partir desse enfoque que o cinema moderno brasileiro surgirá.
A fase dos primeiros filmes, quando se buscava a "verdadeira face do homem brasileiro", como propunha Glauber Rocha, foi chamada por Carlos Diegues de "vocação realista", cuja definição marca um primeiro conflito ideológico no grupo de jovens que pretende aprofundar as propostas surgidas a partir da consciência da necessidade de uma cinematografia brasileira surgida nos congressos de cinema que se realizavam na década de cinqüenta. É ali que, em 1952, Nelson Pereira dos Santos defende o aproveitamento de assuntos nacionais. Em tais declarações parece haver uma já pré-definição do que é "nacional" ou "brasileiro" quando se sabe que o que havia era um grande debate sobre identidade nacional sob duas vertentes: a Universidade de São Paulo e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB).
O que nos interessa aqui é perceber de que forma essa busca de definição acontece dentro do grupo do Cinema Novo e de que forma a produção construída sob esta marca se relaciona com o Modernismo, pois foi no movimento artístico moderno que o Cinema Novo estabeleceu mais fortemente sua relação com a tradição nacional, já que não se reconhecia uma tradição cinematográfica, apenas ciclos interrompidos. O ponto de partida é justamente uma idéia de popular que passa a ser valorizado nos anos sessenta fora do folclore e do exotismo.
A idéia construída dentro dos Centros Populares de Cultura e da União Nacional dos Estudantes continuava a manter fora da positividade manifestações como o futebol e o samba, por exemplo, por serem considerados alienadores. Para o CPC, o popular servia para ser representado dentro de parâmetros políticos definidos pela classe média e seus jovens revolucionários a fim de conscientizar as massas. Até este ponto, os cinemanovistas não discordavam. Cinco vezes favela (1962) e Barravento (1960-61) são exemplo disso.
No anteprojeto do Manifesto do CPC, Carlos Estevam classifica a arte popular sob três marcas: arte do povo, que é a produção de comunidades atrasadas para satisfazer necessidades lúdicas e de ornamento; arte popular, que é a arte da indústria cultural que serve para distrair as massas; e arte popular-revolucionária, que é a formalização das manifestações espontâneas do povo no qual o artista toma os conteúdos originais e compõe dentro da sintaxe das massas a fim de conscientizá-las.
Foi justamente o modo de fazer arte popular-revolucionária que gerou os conflitos entre o CPC e os jovens cineastas, já que a sintaxe das massas corresponderia ao cinema narrativo clássico, de fácil compreensão e apelo a fim de levar temas que "desalienassem", ou melhor, explicitassem o sentimento das massas populares, idéias tão caras ao ISEB. No entanto, a proposta do Cinema Novo era trabalhar tanto no nível da representação quanto do representado. Ou seja, não adiantava fazer um filme sobre a violência no Nordeste com o mocinho vestido como um caubói e com uma estética perfeita à americana com "os índios de gravata e paletó" (GLAUBER, 1981: 14).
Nas primeiras produções do Cinema Novo, a relação com identidade nacional e com a cultura não se manteve dentro das definições propostas pelo CPC, mas respeitou as mesmas bases definidoras: conceitos como cultura alienada, colonialismo e autenticidade cultural, que viriam a incorporar muito do que o CPC rejeitava como as manifestações religiosas, por exemplo. Poderíamos ainda acrescentar a rejeição ao avanço da indústria cultural, o que deixaria o Cinema Novo bem longe da idéia de bárbaro tecnizado de Oswald de Andrade, que só será retomada com o Cinema Marginal. Por isso, as produções em sua maioria dirigem-se para o interior do país na intenção de retratar as condições econômicas, políticas e sociais do mundo rural. Lá, revela-se o Brasil arcaico, violento, miserável.
A forma de realizar a proposta dessa primeira fase assume as características de cada um dos cineastas. Em Glauber Rocha, por exemplo, há a "tentativa de síntese dos mitos históricos do Terceiro Mundo mediante o repertório nacional do drama popular" (GERBER, 1974: 33). Neste repertório, Glauber busca personagens e um modo de narrar. A fonte de Deus e o diabo na terra do sol (1964), por exemplo, é a literatura de cordel, na qual imagens reais e irreais se fundem e a descrição da ação se sobrepõe ao naturalismo. Já em Vidas secas (1963), Nelson Pereira dos Santos buscou a literatura de Graciliano Ramos, pois via ali uma pesquisa sobre a realidade do Nordeste e sob a forma de roteiro: "(...) o livro é tão rico de imagens, os detalhes são tão surpreendentes, que já é uma espécie de roteiro. Tem até posição de câmera. 'Fabiano agachou, pegou a cuia... bebe... olhou e viu os beiços secos de Sinhá Vitória.' O plano está feito - a câmera começa em Fabiano, e depois, de baixo para cima, focaliza Sinhá Vitória" (SANTOS in SALEM, 1987: 172).
Considerado pelo crítico Alex Viany o coroamento máximo da primeira fase, chamada de período de formação do Cinema Novo, o filme Vidas secas revela sua autoria ao se "rebelar" contra algumas regras do cinema clássico como o eixo de 180 graus e alguns procedimentos técnicos comuns com o uso de filtros – a fim de revelar o inclemente sol nordestino – até decisões de enquadramento, direção e montagem que revelam a assinatura do autor problematizando a idéia de realismo cinematográfico. O filme é feito a partir de uma respeitosa adaptação a um texto clássico regionalista de Graciliano Ramos, escritor politicamente comprometido, assim como o diretor.
Tanto na busca pela "imagem" quanto pela narrativa legitimamente nacional, o Cinema Novo identifica-se nessa primeira fase com um projeto político de esquerda que identifica modernidade com crítica e emancipação humana. No entanto, com um toque nacionalista de país dependente, conforme definição acadêmica muito em voga na época a partir do grupo de intelectuais da Universidade de São Paulo.
Era também a política, mais do que a comercialização, que justificava a busca da platéia. Afinal, ela estava nos cinemas na fase anterior, das chanchadas. Para onde ela havia ido nesse momento? Aqui aparecem dois dados significativos: o cinema que se propunha era artesanal, fora dos esquemas do produto de consumo de massa, do cinema industrial. Justamente o contrário do cinema que se fazia no Brasil. Havia o modelo popular, ou popularesco, trabalhando com os elementos da cultura de massa, os atores vindos do rádio e intencionalmente paródica, ao trabalhar sobre uma norma – o cinema norte-americano – para ironizá-lo. E um modelo pretensamente elitista da produtora Vera Cruz, que pretendia fazer cinema brasileiro à americana, mas que se construiu como pastiche, no sentido pejorativo do termo. Ou seja, a relação que o Cinema Novo pretendia com a platéia era uma nova relação, uma relação fundadora, estabelecida sobre as bases de um cinema artesanal, único possível de se realizar num país subdesenvolvido e pobre que não podia – e não devia – copiar o modelo norte-americano. Ou seja, nesse cinema não poderia haver vínculo entre arte e indústria.
Um outro dado importante para caracterizar o Cinema Novo como moderno é que nele o papel do autor é fundamental. A figura do gênio criador que sintetiza toda a idéia da obra de arte mesmo que ela seja intrinsecamente coletiva. É interessante perceber que essa é uma idéia proveniente da França, originada pelos críticos da revista Cahiers du cinema, que viraram posteriormente diretores de cinema. Ou seja, autoria ainda era fundamental nos anos sessenta não só por aqui. A esse princípio fundamental unem-se também a estética da Nouvelle Vague e do Neo-realismo italiano, criando referências européias ao movimento que procurava caminhar no sentido oposto ao cinema narrativo norte-americano.
Mas essa relação é problemática. A platéia não era aquela a qual o cinemanovista pretendia se dirigir. Jean-Claude Bernardet revelou em seu livro Brasil em tempo de cinema que o Cinema Novo foi produzido por integrantes da burguesia – os jovens intelectuais de classe média – para um público também burguês, muitas vezes alvo de crítica nas próprias produções. É o que vemos no filme O desafio (1965), de Paulo César Saraceni, realizado já na segunda fase do Cinema Novo inaugurada com o golpe militar. É importante perceber que continua o compromisso explícito com a revelação de um Brasil, além da criação de uma representação de base moderna que subverte as regras do cinema clássico, criando uma nova espacialidade, assim como há a busca de uma nova temporalidade. Porém, a temática rural com marcas da ideologia cepecista perde força e cede a primazia ao universo urbano. Em O desafio, Paulo César Saraceni utiliza a nova sintaxe fílmica como elemento narrativo revelador do momento de dúvidas políticas e existenciais de seus personagens.
Entre 1964 e 1968 há um grande número de adaptações cinematográficas produzidas e mais experimentação de linguagem, além de um pessimismo em relação ao futuro. Tem-se nesse momento a consciência de que o projeto popular não alcança seus objetivos, mas curiosamente agrada à platéia estrangeira, aumentando paulatinamente o número de premiações em festivais europeus de cinema.
É também nessa segunda fase, em 1965, que Glauber Rocha divulga sua "Estética da fome", durante uma mostra de filmes latino-americanos em Gênova, Itália. No documento, ele contrapõe a galeria de famintos do Cinema Novo ao cinema "digestivo" que seria aquele sobre "pessoas ricas com belas casas dirigindo carros luxuosos", cujo objetivo é puramente industrial. Glauber critica também os europeus que elogiam os filmes brasileiros por pura "nostalgia do primitivismo". Mas, como destacam Randal Johnson e Robert Stam no livro Brazilian Cinema, a principal contribuição do ensaio está na necessidade de buscar um estilo apropriado ao Brasil real, articulado com a temática social junto com a produção estratégica de uma verdadeira estética revolucionária (1995: 68). Fica, então, bem claro que as intenções políticas da primeira fase continuam, pois não há a possibilidade de fazer cinema no Terceiro Mundo fora desse posicionamento, mesmo com a implantação de um regime de força.
Tomando o que talvez seja a principal característica dessa fase – a relação com projeto literário brasileiro – é importante ressaltar que para os cinemanovistas a idéia de forma-conteúdo está sempre presente. Nesse caso, assumindo as características de representação e representado. Sobre este segundo elemento já tratamos – pois ele deveria ser primordialmente o homem brasileiro rural ou urbano – e agora cada vez mais saído das páginas dos livros. Talvez o mais interessante acontece em relação à representação que, muitas vezes, também têm raízes na forma literária.
Rachel Gerber, por exemplo, defende que Glauber Rocha buscou uma forma de expressão nacional, um conceito de montagem baseado na estrutura narrativa do cordel:
A estrutura narrativa da literatura de cordel era facilmente notada em Deus e o Diabo e O Dragão da maldade, porque esses filmes tiram diretamente dali seus dados e sua forma. Esta é reencontrada, ainda que dissimulada sob outras estruturas em cada um dos filmes. A filiação cultural de toda a obra não deixa margem a dúvidas. Os filmes de Glauber retomam a narrativa mítica que é difundida através de inumeráveis variantes da literatura de cordel do Nordeste. Pelo desvio do mito – isto é, de uma vasta unidade sintagmática – dá-se a primeira ancoragem do sistema num código cultural exterior ao texto (1977: 71).
Tal relação não se constitui em novidade. Desde o início, os cinemanovistas buscavam um intercâmbio com a chamada cultura popular nos moldes cepecistas que não tem nenhuma relação, em termos de conteúdo, com a cultura de massa, esta sim desqualificada por estar fundamentalmente relacionada à alienação e colonização cultural. Os diretores queriam criar a grande arte, a alta cultura possível em um país dependente, valorizando dessa forma o país e seu povo, numa atitude tipicamente populista e característica da década brasileira.
Talvez a novidade só venha a aparecer quando a perplexidade se instalou. O Ato Institucional nº 5 fechou o cerco à produção cultural, pelo menos àquela que se pretendia revolucionária e longe das amarras do Estado. O novo projeto repressor previa o fomento dos meios de comunicação de massa, em especial a TV, e o controle mais rígido da censura e das formas de financiamento. Os cinemanovistas têm então que buscar formas alternativas de contarem as suas histórias sobre homem brasileiro sem correrem o risco de suas latas de filmes ficarem fechadas nas prateleiras oficiais.
Nesse momento, o Cinema Novo passou a recorrer a alegorias e metáforas para contar suas histórias. Um recurso que Carlos Diegues chamou de "estética do silêncio" em entrevista na TV Cultura em 1976:
Nós fizemos uma espécie de cinema de silêncio, uma espécie de estética de silêncio, mas nós não pensávamos que isso funcionasse como álibi. Nós transformamos isso em linguagem, uma linguagem alegórica, fabulesca, fantasia. Eu acho, por exemplo, sem falsa modéstia nenhuma, que nós fomos no cinema novo brasileiro os precursores desse realismo mágico que tanto falam hoje na literatura latino-americana e que realmente é muito importante. Já está no cinema novo há muito tempo, e este realismo mágico também fez parte dessa estética do cinema novo.
É curioso notar que se nos anos sessenta, o clima libertário e revolucionário levou a uma pesquisa de linguagem inédita no cinema brasileiro, é justamente no momento radicalmente oposto que essa linguagem vai se desenvolver com características consideradas, pelos próprios cineastas, como legítimas e reveladoras de uma realidade. E mais, é essa experiência que provocará um novo pacto com o público e gerará bilheterias inéditas para os filmes de diretores do Cinema Novo.
Um dos exemplos é Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, produzido em 1969. Filme colorido, sucesso de bilheteria, que adapta uma obra modernista e radicaliza na alegoria e na carnavalização, funcionando como uma resposta ao momento político-cultural brasileiro.
O filme de Joaquim Pedro foi realizado com recursos da Condor Filmes através da intermediação do Instituto Nacional de Cinema (INC), criado em 1966 e muito criticado em seu surgimento, pois temia-se uma ação de censura. Dentro de um movimento que defendia a política de autor com uma câmera na mão e uma idéia na cabeça, um órgão regulador não era bem visto. Mas o governo garantia que o papel do INC seria de fazer a transição para uma decisiva ação cultural. Além de trazer recursos para produção de filmes, o INC funcionou como patrocinador de filmes e distribuidor de prêmios, na maioria documentários sobre autores brasileiros, conforme mostrou Ana Cristina César em Literatura não é documento, de 1979.
Não podemos deixar de ver na iniciativa aquilo que os cineastas temiam, um controle da produção. Afinal, mesmo com o advento do golpe, até 1968, ainda havia uma hegemonia cultural de esquerda que só o AI-5 veio abalar com sua violência. E o papel do INC como responsável pela aprovação dos projetos que solicitariam recursos não deixa de revelar um perfil regulador. Pois como disse Joaquim Pedro de Andrade em relação a Macunaíma: "No caso de um projeto como o do meu filme, eles se interessaram por ele simplesmente porque era uma película que podia ter êxito popular, e isso se via desde o roteiro".
Mas as alegorias, conforme observa Ismail Xavier em Alegorias do subdesenvolvimento,
(...) mantêm o fundo pedagógico e procuram (não sem problemas) o desenlace que define uma moral conclusiva no tocante à identidade nacional e suas relações com a modernização conservadora. Brasil ano 2000 (Walter Lima Júnior, 1969), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e O dragão da maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) são filmes de cineastas que vêm do Cinema Novo e estão inseridos num movimento de cinema de autor em direção aos parâmetros de comunicação vigentes no mercado (1993: 13).
Ou seja, mesmo ao aproximar-se do mercado, os cinemanovistas permaneciam fiéis às idéias de autoria e comprometimento nacionalista, preocupando-se com a fusão do projeto estético com o projeto político. No novo momento, os filmes propõem-se à leitura pelo espectador, pois sempre manifestam algo a ser revelado. E, na maioria das vezes, a chave explicativa está na tradição cultural brasileira.
Aqui é importante voltar ao filme de Joaquim Pedro, porque Macunaíma tem a marca tropicalista cuja radicalização cinematográfica gerará uma vertente cética sem compromisso com a utopia modernista, mas que já demonstra uma diferença em relação às propostas apresentadas anteriormente. Aqui, o que se radicaliza é o projeto estético fazendo valer a cultura popular e massificada da chanchada representada por Grande Otelo e Wilza Carla, a mistura de gênero, o narrador irônico com a presença de dois cenários caros ao Cinema Novo: o arcaico da origem selvagem e o moderno da cidade industrializada/monetarizada. Mas é um projeto diverso daquele de Mário de Andrade no livro, pois o diretor sai da proposta literária marcada por um realismo mágico avant la lettre e aproxima-se de um realismo caro ao projeto regionalista de trinta, trazendo Macunaíma e seus irmãos do interior em um pau de arara como migrantes nordestinos de destino trágico e certo na cidade ou transformando a mãe do mato Ci em uma guerrilheira urbana. Ou seja, mesmo radicalizando o projeto estético, Joaquim Pedro mantém no horizonte o paradigma modernista.
Neste momento, coloca-se uma questão: ainda faz sentido hoje falar em identidade, questão central para o Modernismo, principalmente em países pós-coloniais? Alberto Moreiras, em A exaustão da diferença, afirma que "o discurso literário não pode mais sustentar ou acionar o elo entre a cultura e o estado-nação, não pode ocupar a posição de significante vazio que poderia suturar uma articulação hegemônica no nível do estado-nação" (2001: 111). Para Moreiras, na década de noventa, este lugar foi definitivamente ocupado pelos Estudos Culturais, um espaço onde a articulação entre as disciplinas – e poderíamos dizer, entre práticas culturais – é que produz sentido. Por isso, o autor morreu, as identidades são múltiplas e a principal demanda da sociedade não se direciona mais para a construção de uma sociedade utópica, mas pela cidadania representada pela mídia e pelo consumo. Porém, o significado deste momento não é a perplexidade, a aceitação sem críticas do que a chamada globalização e tudo o que seu gigantesco "guarda-chuva conceitual" justifica. O fundamental é aproveitar o momento em que estamos de cabeça para baixo no loop da montanha russa – imagem criada por Nicolau Svecenko para significar a velocidade estonteante do século XX – para exercer a crítica: "Afinal, uma das vantagens de se estar suspenso no loop é que o sangue desce à cabeça, e isso é ótimo para pensar" (SEVENCKO, 2001: 22). E, com certeza, o lugar privilegiado para essa discussão é o espaço audiovisual, pois a expansão da comunicação televisiva e cinematográfica é crescente e é nele que vamos encontrar nosso lugar de fala e de interseções.

BIBLIOGRAFIA

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BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema? São Paulo: Brasiliense, 1970.
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DIEGUES, Carlos. Cinema brasileiro - idéias e imagens. Porto Alegre: UFRGS, 1999.
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HOLLANDA, Heloísa Buarque. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.
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MIRANDA, Wander Melo de. (org.) Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
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Este artigo foi originalmente publicado, em 2003, no primeiro número da revista on-line DIGITAGRAMA dedicada ao Modernismo no Brasil.